[trinta e cinco]

by cidadão josé

O narrador está, de novo, sentado, cadeira de madeira e aço, mesa quadrada encostada a outra mesa quadrada igual, mas isso agora não lhe interessa. Tem o caderninho de capa zebrada aberto à frente, a caneta – a Roting Tikky, preta – na mão, o café já metade bebido na chávena pousada sobre o pires branco e rosa em tons geométricos – na chávena ainda há roxo, talvez para a distinguir do pires. Acaba o último gole que lhe deixa na língua algumas borras de café que retira com o polegar e o indicador da mão esquerda. Não gosta nada de borras de café no fim do café. Ainda se soubesse prever o futuro no fundo da chávena, ler os números do euromilhões ou isso, mas não, e pede um bagaço. Meio bagacinho para aconchegar o café, bebido na chávena do café. O bagaço é daquele branquinho, caseiro, guardado numa garrafa de uísque por baixo do balcão, não vá algum inspector diligente pedir a factura no afã patriótico de salvar a economia do país.

(pausa)

O narrador aqui distraiu-se e esqueceu-se de escrever o que ia escrever. Mas o que ia escrever antes de se pôr para aqui a falar de cafés e bagaços era que, justamente, não tinha nada para dizer. O narrador quando entrou no café vinha mesmo cheio de boas intenções para narrar uma narrativa assim toda literária e interessante, e senta-se, começa a escrever e, mais uma vez, não lhe ocorre nada para narrar. E um narrador sem narrativa faz tanto sentido como a irreversibilidade de um ministro que continua, ou quase…

O narrador ajusta melhor os auscultadores nos ouvidos para não se distrair com a conversa das duas mulheres que estão por trás dele, e continua a pensar o quanto gostava de ter assunto para uma narrativa. Distraído, leva a chávena à boca para mais um gole de bagaço e a chávena vazia. O copinho também… o narrador fixa seriamente a página amarelada e, com um encolher de ombros, resolve pedir outro bagaço.

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